Encontrava-me concentrado no trabalho a programar quando o Bruno, o meu colega de escritório, chega ao pé de mim com um sorriso de orelha a orelha, vira-se de lado dobra-se para baixo e destapa a nuca.
Dei-lhe um doloroso caldo no pescoço, um violento pontapé no rabo e um sincero aperto de mão com um forte abraço de parabéns. Reparei no ar escandalizado dos colegas de escritório que se encontravam presentes, ar esse que se manteve até ao momento do abraço e o subsequente alívio deles quando induziram de o que se tratava.
Apesar de isto ter acontecido num local completamente fora de contexto, porque eramos dois colegas programadores, tratou-se de uma praxe na qual um piloto aviador dá os parabéns a um aluno piloto que acabou de regressar ao então mundo real depois de ter feito há poucas horas o seu primeiro voo a solo. Aliás, esta é apenas uma das partes da praxe. A outra parte consiste em dar um banho de mangueira no aeródromo ao aluno depois dos caldos, pontapés, apertos de mão e abraços.
É uma praxe muito divertida, sobretudo quando acontece no gelo do inverno e tem como missão acolher o novo membro na família aeronáutica. Eu fui largado (fiz o meu primeiro voo solo) em Março e ainda me lembro do gelo da água e já foi longe do pico do frio, mas lembro-me com saudade.
É também uma praxe que tem algumas características únicas, as quais destaco a seguir. É totalmente voluntária. Sou piloto há muitos anos e não me lembro de alguém ter alguma vez ter aderido à praxe sem ser de sua vontade. Quando o Bruno veio ter comigo, ele próprio pôs-se a jeito e com um sorriso de orelha a orelha.
É uma brincadeira que apesar de começar de forma algo peculiar acaba de forma extremamente acolhedora. É um gesto sincero de boas vindas representado sobretudo pelo aperto de mão e pelo abraço.
É uma praxe que diz "parabéns, bem vindo, agora és um de nós [e serás mais ainda quando passares no exame]". Não tem um pingo de atitude de superioridade de um lado ou inferioridade de outro, de autoridade, de intimidação, de obrigação e muito menos de humilhação. Não há organizações por detrás disto (excepto a logística de preparar a mangueira e o balde de água para o banho), nem tribunais de praxes, nem duxes, nem represálias para quem não quiser aderir, nada. Trata-se no fundo de um cumprimento mais elaborado que o normal.
Precisamente por pertencer a uma classe que tem um ritual como este e por ter nessa classe uma referência saudável daquilo que deve ser uma praxe, eu meço todas as outras praxes em comparação com esta e a avaliação que faço das ditas é absolutamente negativa.
Refiro-me especificamente à praxe académica. É uma praxe de veteranos versus caloiros. Reforço a palavra "versus". O objectivo, dizem, é o de acolher e acredito que seja esse o efeito em muitas situações. No entanto, em muitas outras situações, é frequente a situação descontrolar-se e acabar por haver o abuso.
Há algumas características na praxe académica que me incomodam profundamente. Quando fui caloiro, recusei-me uma vez a sair da sala de computadores onde estava a fazer um trabalho para ser praxado. Fui ameaçado com tribunal de praxes e bastante pressionado. Mesmo assim não fui e borrifei-me na ideia de tribunal de praxes, pois eu não tinha a mínima intenção de por os pés nesse dito tribunal. No entanto, quantas pessoas não se teriam deixado intimidar e teriam cedido à pressão, como eu vi acontecer? É completamente inadmissível esse tipo de comportamento. É o tipo de situação a partir do qual eu penso que até devia de se deixar de chamar praxe e passar a chamar-se de bullying académico.
Outra característica que me incomoda nas praxes é a duração das mesmas. Uma hora de festejo na faculdade e um jantar de colegas veteranos e caloiros em pé de igualdade teria o efeito integrador que se alega sem toda a carga psicológica das praxes. Faculdades onde se praticam praxes durante uma semana são faculdades onde se está a fazer perder tempo aos caloiros que pode ser usado para estudarem e trabalharem numa fase particularmente difícil do curso que é precisamente a adaptação do ensino secundário para o muito mais exigente ensino académico.
Tudo o que mencionei atrás são pormenores e sintomas daquilo que penso ser a verdadeira raiz do problema, aquilo que me incomoda mais que tudo nas praxes. É a noção de superioridade que é instalada entre veteranos e caloiros. É a ideia de que só porque se esteve já um só ano na faculdade (varia de faculdade para faculdade) que se tem autoridade sobre pessoas que acabaram de entrar. Pior ainda é essa noção de autoridade obtida de forma totalmente ilegítima vir acompanhada da noção de autoritarismo e com a propensão para a guerra psicológica e para a humilhação. Monta-se um autêntico sistema de castas entre pessoas que deveriam ser fundamentalmente iguais. Não é verdade que todos os praxados académicos são voluntários e não é verdade que se consegue impor a disciplina para que se consiga garantir que não hajam praxes a ultrapassar limites do bom senso, do respeito pelo próximo e até da legalidade. Há sempre pessoas a abusar, a embebedarem-se, a humilhar os outros, a exagerar nas brincadeiras de mau gosto, a ultrapassar barreiras e a desrespeitar os outros inclusive no plano sexual.
Escrevo tudo isto a propósito da tragédia da Praia do Meco. Oxalá que não haja fogo por detrás de todo o fumo e que não tenha acontecido o que parece ser evidente ter acontecido, uma praxe com um fim horroroso. Seria muito bom que toda a verdade viesse ao de cima.
Sou a favor da criminalização das praxes académicas por princípio, mas se se confirmar que este acidente na Praia do Meco foi o resultado de bullying académico, eu penso que essa legislação adquire uma prioridade muito maior e tornar-se-á a única homenagem minimamente decente para com as vítimas.
Não, não fui vítima de praxe violenta e não tenha esta posição devido a trauma; sou apenas um defensor acérrimo contra tudo o que possa representar um atentado às liberdades individuais de cada um e contra poderes que se estabeleçam ilegitimamente. A autoridade do Estado é legítima, a de um professor, de um pai ou de uma mãe sobre um dependente também, e é também legítima a autoridade de um empregador sobre um empregado por via do salário. Não há nada que possa conferir autoridade a um colega de estudos sobre outro, muito menos quando dessa autoridade possa resultar uma tragédia.
Dei-lhe um doloroso caldo no pescoço, um violento pontapé no rabo e um sincero aperto de mão com um forte abraço de parabéns. Reparei no ar escandalizado dos colegas de escritório que se encontravam presentes, ar esse que se manteve até ao momento do abraço e o subsequente alívio deles quando induziram de o que se tratava.
Apesar de isto ter acontecido num local completamente fora de contexto, porque eramos dois colegas programadores, tratou-se de uma praxe na qual um piloto aviador dá os parabéns a um aluno piloto que acabou de regressar ao então mundo real depois de ter feito há poucas horas o seu primeiro voo a solo. Aliás, esta é apenas uma das partes da praxe. A outra parte consiste em dar um banho de mangueira no aeródromo ao aluno depois dos caldos, pontapés, apertos de mão e abraços.
É uma praxe muito divertida, sobretudo quando acontece no gelo do inverno e tem como missão acolher o novo membro na família aeronáutica. Eu fui largado (fiz o meu primeiro voo solo) em Março e ainda me lembro do gelo da água e já foi longe do pico do frio, mas lembro-me com saudade.
É também uma praxe que tem algumas características únicas, as quais destaco a seguir. É totalmente voluntária. Sou piloto há muitos anos e não me lembro de alguém ter alguma vez ter aderido à praxe sem ser de sua vontade. Quando o Bruno veio ter comigo, ele próprio pôs-se a jeito e com um sorriso de orelha a orelha.
É uma brincadeira que apesar de começar de forma algo peculiar acaba de forma extremamente acolhedora. É um gesto sincero de boas vindas representado sobretudo pelo aperto de mão e pelo abraço.
É uma praxe que diz "parabéns, bem vindo, agora és um de nós [e serás mais ainda quando passares no exame]". Não tem um pingo de atitude de superioridade de um lado ou inferioridade de outro, de autoridade, de intimidação, de obrigação e muito menos de humilhação. Não há organizações por detrás disto (excepto a logística de preparar a mangueira e o balde de água para o banho), nem tribunais de praxes, nem duxes, nem represálias para quem não quiser aderir, nada. Trata-se no fundo de um cumprimento mais elaborado que o normal.
Precisamente por pertencer a uma classe que tem um ritual como este e por ter nessa classe uma referência saudável daquilo que deve ser uma praxe, eu meço todas as outras praxes em comparação com esta e a avaliação que faço das ditas é absolutamente negativa.
Refiro-me especificamente à praxe académica. É uma praxe de veteranos versus caloiros. Reforço a palavra "versus". O objectivo, dizem, é o de acolher e acredito que seja esse o efeito em muitas situações. No entanto, em muitas outras situações, é frequente a situação descontrolar-se e acabar por haver o abuso.
Há algumas características na praxe académica que me incomodam profundamente. Quando fui caloiro, recusei-me uma vez a sair da sala de computadores onde estava a fazer um trabalho para ser praxado. Fui ameaçado com tribunal de praxes e bastante pressionado. Mesmo assim não fui e borrifei-me na ideia de tribunal de praxes, pois eu não tinha a mínima intenção de por os pés nesse dito tribunal. No entanto, quantas pessoas não se teriam deixado intimidar e teriam cedido à pressão, como eu vi acontecer? É completamente inadmissível esse tipo de comportamento. É o tipo de situação a partir do qual eu penso que até devia de se deixar de chamar praxe e passar a chamar-se de bullying académico.
Outra característica que me incomoda nas praxes é a duração das mesmas. Uma hora de festejo na faculdade e um jantar de colegas veteranos e caloiros em pé de igualdade teria o efeito integrador que se alega sem toda a carga psicológica das praxes. Faculdades onde se praticam praxes durante uma semana são faculdades onde se está a fazer perder tempo aos caloiros que pode ser usado para estudarem e trabalharem numa fase particularmente difícil do curso que é precisamente a adaptação do ensino secundário para o muito mais exigente ensino académico.
Tudo o que mencionei atrás são pormenores e sintomas daquilo que penso ser a verdadeira raiz do problema, aquilo que me incomoda mais que tudo nas praxes. É a noção de superioridade que é instalada entre veteranos e caloiros. É a ideia de que só porque se esteve já um só ano na faculdade (varia de faculdade para faculdade) que se tem autoridade sobre pessoas que acabaram de entrar. Pior ainda é essa noção de autoridade obtida de forma totalmente ilegítima vir acompanhada da noção de autoritarismo e com a propensão para a guerra psicológica e para a humilhação. Monta-se um autêntico sistema de castas entre pessoas que deveriam ser fundamentalmente iguais. Não é verdade que todos os praxados académicos são voluntários e não é verdade que se consegue impor a disciplina para que se consiga garantir que não hajam praxes a ultrapassar limites do bom senso, do respeito pelo próximo e até da legalidade. Há sempre pessoas a abusar, a embebedarem-se, a humilhar os outros, a exagerar nas brincadeiras de mau gosto, a ultrapassar barreiras e a desrespeitar os outros inclusive no plano sexual.
Escrevo tudo isto a propósito da tragédia da Praia do Meco. Oxalá que não haja fogo por detrás de todo o fumo e que não tenha acontecido o que parece ser evidente ter acontecido, uma praxe com um fim horroroso. Seria muito bom que toda a verdade viesse ao de cima.
Sou a favor da criminalização das praxes académicas por princípio, mas se se confirmar que este acidente na Praia do Meco foi o resultado de bullying académico, eu penso que essa legislação adquire uma prioridade muito maior e tornar-se-á a única homenagem minimamente decente para com as vítimas.
Não, não fui vítima de praxe violenta e não tenha esta posição devido a trauma; sou apenas um defensor acérrimo contra tudo o que possa representar um atentado às liberdades individuais de cada um e contra poderes que se estabeleçam ilegitimamente. A autoridade do Estado é legítima, a de um professor, de um pai ou de uma mãe sobre um dependente também, e é também legítima a autoridade de um empregador sobre um empregado por via do salário. Não há nada que possa conferir autoridade a um colega de estudos sobre outro, muito menos quando dessa autoridade possa resultar uma tragédia.